sábado, 14 de agosto de 2010

A alma do negócio

Davi e Henrique estudaram juntos a vida quase inteira.

Muito amigos, passaram os primeiros dezesseis anos de suas vidas em companhia, na mesma escola, carteiras sempre emparelhadas.

Na época da faculdade, Davi foi estudar Economia em Viçosa/MG, Henrique fez intercâmbio e depois foi estudar administração em Londres.

Nunca mais se viram e o contato foi minguando ao longo dos anos.

Um belo dia, recentemente, Henrique viu Davi saindo de uma loja e esportes de um Shopping da cidade. Mesmo atrás da barba e óculos, reconheceu o velho amigo e o chamou acenando!

- Davi!!!

Meio tonto, o cara se virou e viu o antigo companheiro.

- Caralho! Henrique?

Davi exclamou, impressionado com o belo terno do amigo.

E então começaram um papo animado no corredor do lugar.

- E aí velho? Como vão as coisas, a vida? – começou Henrique.

- Tudo bem meu amigo! Comprei essa bola para bater uma peladinha com uns amigos...

- Mas e aí? Casou, tá trabalhando onde?

- Sou bancário, não casei... e você? – Perguntou Davi por educação, pois sabia que o amigo iria humilhá-lo.

O tom de Davi não foi muito animado, mas enfático, na parte do “não casei”.

- Eu casei com a Gioconda, lembra dela? Administro as empresas do papai, estou muito bem. Faço duas viagens mundiais por ano, para você ter idéia. Vivo tradicionalmente, hahaha!

O tom arrogante de Henrique começou a incomodar a Davi e ele partiu para ironia.

- Gioconda? Sim, lembro. Uma muito altona, “forrrte”... Mas que bom!! Quer dizer que está feliz... Eu também estou, livre, nada me prende.

- Hahaha, você hein... precisa tomar juízo.

Davi não gostou nem um pouco do comentário estilo sabichão do amigo e, de repente, se lembrou do porquê o contato foi rompido. “Porra! Nem para o casamento dele fui convidado...”, pensou. Por isso, deu um jeito de encurtar conversa.

- Bem, Henrique. Bom te ver, preciso ir, ta na minha hora.

Henrique estranhou a rápida despedida do caro e pensou de cá: “Puxa vida! Nem trocamos contato!”.

- Tá certo... toma um cartão meu. Me liga para tomarmos uma depois.

Davi pensou “Deus me livre!” mas disse:

- Lógico! Lógico...

E se foram.

Davi presentear, com a bola, o filho que teve em um relacionamento casual e Henrique, para a casa da amante, adepta do sadomasoquismo.









MÚSICA A CALHAR:
"O apreço não tem preço, eu vivo ao Deus dará." ("Amigo é para essas coisas" - MPB 4)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Auto (sufi)ciência

João Augusto Seraphião não tinha aumentativo só no nome.

Para ele, e para quem fosse um pouco mais sensível, possuía uma alma superlativa.

Com duas academias incompletas, em Medicina e Direito, bacharelou-se em Filosofia.

Romântico, os hábitos boêmios e notívagos renderem-lhe fama, a de vagabundo.

Ao longo dos seus trinta e pucos primeiros anos, não tinha uma noite que deixava de ser visto na Cinelândia, Lapa ou Vila Mimosa, uivando como lobo e balançando como pêndulo.

O troco da vida foi o insucesso profissional e a falta de mulheres, direitas.

Aparentando 60, aos 43 anos vendia bujingangas paraguaias da China na Av. Presidente Vargas, próximo à Candelária. A venda de canetas e lapiseiras era seu forte, clientes de escritório.

Trabalhava em uma pequena banca, própria, ia como brinde, para quem lhe simpatizasse, filosofias de bolso. Pequenas frases que induziam à reflexão, um Twitter dos anos 1980.

Duas pessoas, em particular, levavam as suas sempre que iam à banca: uma linda senhorita, de longos cabelos negros, óculos e nariz esculpido a mão e outra, de cabelos longos, só que mais claros, alta, face de Brabie, que não lhe apetecia tanto quanto a outra.

Aliás, não sei porque essa última entrou na história.

Pois bem, sua essência sonhadora (e outros motivos), o deixava sempre atento à passagem da morena de belo nariz. Sempre despojadamente vestida mas altiva e com uma pressa que presumia um rotineiro atraso.

Dias após vender uma recém lançada caneta dez cores para a sua musa, João foi cobrado por uma nova cliente que acabara de adquirir um jogo Tetris para seu filho: “Vem cá? E o meu papelzinho? A Margarida comentou que ganhou um quando comprou a caneta com o senhor...”

O nome dela era Margarida. Não era lá um nome de musa, mas passou a ser.

Foram duas belas notícias. O nome dela era Margarida que gostava do que ele escrevia.

Naquela noite não dormiu de ansiedade: quando Margarida voltaria a comprar algo na banca?

Não tardou. Margarida precisou retornar, pois achou o cheiro de tuttifruti da caneta meio infantil, comprou outra sem aroma.

João, em conjunto com o troco, deu mais um bilhete à Margarida e não era uma de suas filosofias.

Margarida o abriu ali mesmo e, ao terminar de ler, olhou sério para dentro da cara do João e disse, sem pestanejar: “Vai te catar, coroa filho da puta!”

No dia seguinte a banquinha do João foi para a Avenida Rio Branco, lá o movimento parecia ser melhor.







MÚSICA A CALHAR:
"Quem quer ser mais do que é, um dia há de sofrer" (Roda - De Gil por Elis)